Jornal
do Brasil / Desde a semana passada a Itália é agitada
por uma discussão inusitada: a recusa de dar sepultura
em território italiano a Erich Priebke, ex−oficial nazista
e capitão das SS. Após a guerra, Priebke conseguiu fugir
para a Argentina, com identidade falsa. Menos de um ano
depois, no entanto, voltaria a usar seu nome verdadeiro.
Ele conseguiu permanecer na obscuridade por décadas,
trabalhando como professor na cidade de Bariloche, até
ser localizado por uma equipe de jornalistas americanos,
em 1994. Acabou sendo extraditado para a Itália.
Priebke, que morreu aos 100 anos, vinha cumprindo pena de prisão perpétua em
regime domiciliar, em um apartamento em Roma, desde 1999.
Após ser extraditado para a Itália, foi condenado pela
participação no massacre das Fossas Ardeatinas: 335 civis,
entre eles 70 judeus, foram mortos. A chacina, que ocorreu
em 24 de março de 1944, foi ordenada pessoalmente por
Adolf Hitler, enfurecido com a morte de 33 soldados alemães
em um ataque de guerrilheiros na região de Roma.
Como represália, para cada
alemão morto dez civis teriam que ser executados. Os
túneis de uma antiga pedreira próximo da via Ardeatinas,
nos subúrbios de Roma, foram o local escolhido e as vítimas
selecionadas, em sua maioria, em prisões da região, inclusive
os judeus. Ao todo, 335 civis (todos homens e totalizando
cinco a mais do que o determinado originalmente) foram
recolhidos pelos guardas da SS, liderados por Priebke
e por outro oficial, Karl Hass.
Todas as cidades italianas
e o próprio estado do Vaticano recusam−se a dar sepultura
ao nazista morto. Negam−se a abrigar em seu solo seus
restos. Nem a Argentina, onde ele viveu vários anos,
nem a Alemanha, sua terra natal. Há uma semana o corpo
espera um lugar para ser sepultado.
A grande preocupação é que
o enterro de Priebke represente uma oportunidade para
manifestações de neonazistas que existem em abundância
na Itália e em outros países da Europa. Qualquer desses
atos alimentaria o clima de tensão na capital italiana,
já que em 16 de outubro se comemora o 70º aniversário
da deportação de mil judeus do gueto de Roma para o campo
de concentração de Auschwitz, na Polônia, dos quais apenas
16 sobreviveram. Entre eles encontra−se o famoso filósofo
Primo Levi, que escreveu depoimentos pungentes sobre
sua experiência no campo.
Efraim Zuroff, diretor do
centro Wiesenthal organização que zela para que os criminosos
nazistas respondam por seus crimes — declarou que "o melhor é enviar o corpo para a Alemanha para que seja cremado. A Alemanha tem
as leis adequadas para evitar que os funerais e a incineração
se transformem em uma festa de neonazistas". A cremação do capitão das SS "é uma solução eficaz", acrescentou, após lembrar que o corpo de Hitler também foi cremado. "Com esse gesto se destrói tudo o que representa o nazismo", avalia Zuroff.
Tudo isso faz recordar o terrível
genocídio que manchou para sempre a história da humanidade.
E traz à memória, igualmente, o testemunho de pessoas
que viveram o horror da tragédia e em meio a ela conservaram
sua dignidade humana. Mais ainda: pessoas que, em meio
ao horror do Holocausto, nos ajudam a recordar que o
ser humano é maior que todos os horrores que sobre ele
possam se abater.
Uma delas é Etty Hillesum,
jovem judia holandesa, morta na câmara de gás em Auschwitz,
aos 29 anos de idade. Bonita e sedutora, inteligente
e culta, Etty tinha diante de si um brilhante futuro
brutalmente interrompido pela perseguição nazista. Enquanto
sobre a jovem se fechava o cerco que os nazistas impunham
a seu povo, ela, mergulhada em uma intensa experiência
de Deus, crescia interiormente e sentia−se cada vez mais
livre. Via que os nazistas estavam cegos pela loucura
de um ditador e de um sistema enlouquecido. A tal ponto
que eram eles próprios que estavam presos pelas cercas
de arame farpado. Não seus prisioneiros.
Havia nessa jovem mulher uma
completa ausência de posturas artificiais e visões maquiadas
e disfarçadas das coisas. Sua visão se desenvolveu em
meio às mais grotescas e desumanizantes circunstâncias.
E nesse cenário tão doloroso e negativo, viu lucidamente
que os alemães planejavam o extermínio sistemático de
seu povo. Mas sustentou que, "se pudesse ser encontrado um só alemão decente, haveria razões de sobra para
não odiar a totalidade do povo. Apesar de todo o sofrimento
e injustiça, eu não posso odiar os outros.
Embora seja perfeitamente
compreensível o desconforto do povo italiano em dar sepultura
em seu solo àquele que comandou o assassinato de tantos
de seus filhos, a atitude de Etty Hillesum, feita de
compaixão e piedade para com tanta cegueira, é mais fecunda.
Não esquecer, mas perdoar. Dar sepultura porque é um
ser humano. Mesmo que seja um nazista e um genocida.
Aí está o caminho da liberdade e da redenção.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia
e Ciências Humanas da PUC−Rio, é autora de vários livros
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