O
engenheiro naturalizado brasileiro Thomas Venetianer, 75,
e Laszlo Csatary, 97, considerado o criminoso nazista mais
procurado do mundo e preso há um mês em Budapeste, nunca
chegaram a se conhecer pessoalmente. Suas vidas, no entanto,
permaneceram indiretamente entrelaçadas desde o extermínio
em massa dos judeus ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial.
Vivendo há mais seis décadas no Brasil, Venetianer nasceu em Kosice, no leste
da atual Eslováquia. A cidade fazia então parte do território
da Hungria, cidade onde o nazista Csatary seria, mais tarde,
responsável pelo gueto de onde mais de 15 mil judeus seriam
deportados a campos de concetração, incluindo parte da família
do engenheiro.
Em julho deste ano, o policial húngaro
Laszlo Csatary foi descoberto por repórteres do jornal britânico
The Sun vivendo livremente na capital, Budapeste. Ele retornou
à Hungria há 17 anos, após ter morado com uma identidade
falsa no Canadá entre 1948 e 1995. Csatary havia sido condenado
à morte à revelia pela extinta Tchecoslováquia. Há um mês,
foi preso e se encontra em prisão domiciliar.
Chefiado por Csatary, o gueto de Kosice
foi instalado em uma antiga olaria pouco tempo depois da
ocupação nazista da Hungria, em março de 1944.
Segundo relatos de sobreviventes,
Csatary tratou cruelmente os judeus do gueto, espancando
as mulheres e obrigando-as a cavar trincheiras com as próprias
mãos. Venetianer conta que, por pouco, escapou do destino
reservado a vários de seus familiares.
"Da família da minha mãe,
um tio e uma tia foram mantidos no gueto de Kosice e depois
enviados ao campo de concentração de Auschwitz. Do lado do
meu pai, os que estavam na cidade e não saíram de lá provavelmente
foram mortos", disse Venetianer à BBC Brasil.
O engenheiro só conseguiu se salvar
quando fugiu, então com sete anos, acompanhado do pai e da
mãe, rumo ao território da antiga Eslováquia, duas semanas
antes da invasão alemã.
"Meu pai era um homem à
frente de seu tempo. Ele pressentiu a perseguição que sofreríamos
na Hungria sob controle alemão e decidiu que tínhamos de
abandonar nossa cidade o mais rápido possível", diz.
O engenheiro brasileiro e seu familiares
imediatos escaparam das ordens de Csatary, mas não dos horrores
da guerra. Poucos meses depois, Venetianer e seus pais foram
presos pela Gestapo, a polícia nazista, nas montanhas da
Eslováquia.
PRISÃO - "Tão
logo fomos presos, eu e minha mãe fomos levados a uma prisão
eslovaca, depois ao campo de concentração de Sered e, por
fim, ao de Theresienstadt, na cidade de Terezín, hoje República
Tcheca. Já meu pai foi encaminhado ao campo de concentração
de Sachsenhausen, num subúrbio de Berlim, na Alemanha", afirmou.
Antigo quartel militar, Theresienstadt
ficou conhecido por abrigar a elite intelectual judaica da
época. Era um dos chamados "campos modelo" do nazismo, peça de propaganda da ideologia de superioridade racial do regime.
As condições, no entanto, eram precárias.
"Convivíamos com a superlotação
das celas e falta de condições básicas de higiene. Dormia
na mesma cama que a minha mãe. Fazíamos todas as refeições
no quarto, que dividíamos com outras sete pessoas. Em um
lugar que caberiam 7 mil soldados, os nazistas encarceraram
60 mil judeus", conta.
Dos 140 mil judeus que passaram pelo
campo de concentração, 88 mil foram levados e exterminados
em Auschwitz, enquanto 33 mil morreram dentro do próprio
campo de concentração, segundo dados do museu Theresienstadt.
A libertação do engenheiro brasileiro
ocorreria seis meses depois, em meados de maio de 1945, pelo
Exército Russo. Com a Alemanha derrotada e a Europa em frangalhos,
a volta para casa, em Kosice, durou quase um mês, especialmente
por causa das ferrovias destruídas pelo confronto.
"Não havia transportes
para todo mundo; os caminhões estavam lotados", acrescenta.
REENCONTRO - Venetianer ainda demorou
para rever o pai. O reencontro só ocorreria em agosto daquele
ano.
Antes disso, conta o engenheiro, seu
pai teve de vencer o estado de fragilidade em que se encontrava
após o término da guerra. Pesando apenas 42 kg, ele havia
sido retirado do campo de concentração nos arredores de Berlim
e obrigado a marchar à força junto com outros milhares de
prisoneiros sob a mira das armas dos alemães, que já prenunciavam
a derrota.
"Nessa caminhada sem destino,
quem parasse ou caísse era fuzilado. Já sem forças, meu pai
caiu e foi alvejado. Permaneceu assim por três dias até ser
resgatado pela Cruz Vermelha", afirmou.
BRASIL - Em março de 1948, duas semanas
antes da tomada da Tchecoslováquia pelos comunistas, a família
decidiu fazer as malas rumo a São Paulo, onde já vivia uma
prima de sua mãe.
No Brasil, Venetianer aprendeu o português
e, paralelamente aos estudos, vendia tapetes de porta em
porta na capital paulista. Apesar das dificuldades, conseguiu
se formar em Engenharia Eletrônica pela Universidade de São
Paulo (USP) e em Administração pela Fundação Getúlio Vargas
(FGV).
Casado com uma húngara naturalizada
brasileira, pai de duas filhas e avô de cinco netos, Venetianer
está hoje aposentado e presta consultorias a empresas. Também
ocupa sua agenda dando palestras sobre o Holocausto e prepara
o lançamento de um livro em inglês sobre a história dos judeus
eslovacos durante a guerra.
Questionado sobre a detenção de Czatary,
diz que "gostaria de vê-lo condenado".
"Mas o tempo, de certa
maneira, emudece um pouco o desejo de vingança", afirmou.
"Quando viemos ao Brasil,
comecei a ter a dimensão da tragédia. Naquela ocasião, realmente
tive desejo de vingança. Hoje em dia, é difícil dizer."
ne10.uol.com.br
|